Proibição de torcida visitante cresce e resultado segue igual: nenhum
Em um único fim de semana, o estádio dos Aflitos (Náutico x Sport), o Morumbi (São Paulo x Santos) e a Arena das Dunas (América x ABC) receberam clássicos estaduais sem a presença de uma das torcidas. Mais um da série de eventos que marcam uma preocupante faceta de decadência do futebol brasileiro: a incapacidade de realizar um jogo de futebol completo, com dois times e duas torcidas, locais e visitantes. A famigerada “torcida única” ganha força política em todo o Brasil, em crescimento acelerado, e redesenha por completo o que se entende por futebol no país.
A medida tem sua origem em São Paulo, em 2016, estado que é pioneiro em políticas de restrições nos estádios desde o início dos anos 1990. À época, o Ministério Público Estadual (MPE), na figura do então promotor Paulo Castilho foi o primeiro a sugerir a restrição, sendo seguidamente apoiado pelo Governo do Estado e Polícia Militar. Hoje, promovido a procurador de Justiça, Castilho já não se pronuncia sobre o tema, apesar de ter mantido a posição favorável à “torcida única”em 2019.
De lá para cá, outros estados viveram tentativas, aplicações pontuais ou aplicações definitivas. Rio Grande do Sul e Ceará resistiram à ideia em algumas oportunidades, enquanto Bahia e Goiás fracassaram ao combater a falta de lógica da proibição de visitantes nos estádios – desde 2017 e 2018, respectivamente.
A retomada “normalizada” do público, após as restrições causadas pela pandemia da Covid-19, foi acompanhada por imposições de torcida única em diversos outros estados. Ainda em 2022, os estados de Rio Gande do Norte, Paraíba e Paraná passaram a realizar clássicos pela metade. Nesse início de 2023, foram impostas (em alguns casos, retomadas) as proibições de visitantes em Pernambuco, Alagoas e no Distrito Federal. Ao todo, já são nove unidades federativas submetidas a regimes de exceção em seus principais clássicos locais.
A proibição de visitantes também tem se tornado uma constante em confrontos interestaduais.
Na Copa do Nordeste, desde 2022 os visitantes são banidos de forma pontual, principalmente em jogos de clubes Pernambuco contra clubes de Alagoas, Paraíba ou Rio Grande do Norte. A proximidade entre as capitais e as alianças interestaduais de torcidas rivais faz do eixo Natal-Maceió um problema para as autoridades locais, que optam por responder da forma mais fácil, mas menos correta.
Somam-se ainda os casos onde a “torcida única” foi imposta como medida paliativa aplicada no clássico entre Remo e Paysandu, durante o período de reforma do Mangueirão, principal estádio do Pará. Os clássicos ocorridos no Baenão e na Curuzu, seus respectivos estádios, não contaram com visitantes sob a justificativa de controle sanitário em virtude da pandemia. De todo modo, a reinauguração do Mangueirão, prevista para 19 de março, deve ser em clássico com as duas torcidas.
O problema de lançar a figura de linguagem “murro em ponta de faca” para se referir aos efeitos concretos da ideia de “torcida única”, é que a primeira imagem que vem à mente é a de um sujeito autor de golpes inúteis ferindo a própria mão.
Contudo, diferente do que a expressão sugere, as autoridades brasileiras responsáveis por essa medida aparentam estar com seus metacarpos preservados e muito confortáveis com as suas consequências: nenhuma alteração na realidade “violência no futebol”, mas muitos efeitos nefastos ao futebol como um todo.
Até aqui, o que a medida que proíbe o ingresso de torcedores visitantes nos estádios conseguiu gerar como efeito prático foi a formação de uma geração inteira de torcedores (não necessariamente violentos) que desaprendeu a lidar com os adversários em um ambiente de natural rivalidade.
Os torcedores violentos, por sua vez, seguem praticando as mesmas coisas, nos mesmos ambientes – especialmente longe dos estádios, como sempre foi –, no momento em que lhes interessa – inclusive fora de dias de jogo entre rivais ou mesmo dias sem jogos.
A presumida “inexistência de torcida visitante” é basicamente um mal ensaiado show de ilusionismo que demanda muito esforço retórico para fazer algum sentido.
Ao punir todos, a medida da “torcida única” dá proteção a quem não conseguiu punir ninguém e dá conforto a quem deveria, por dever do ofício, encontrar saídas efetivas para não prejudicar o direito de ir e vir de dezenas de milhares de cidadãos sem envolvimento com atos de violência.
Os promotores e defensores da medida costumam se cercar de números para se defender. A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo alegou, por exemplo, que não pretendia abrir mão da “torcida única” porque a medida “trouxe resultados efetivos”. Em nota ao Estadão, a Secretaria alegou que em 44 partidas realizadas entre abril de 2018 e dezembro de 2019, houve uma redução de 93% das ocorrências de confronto, em comparação às 44 partidas anteriores à medida.
Sem apresentar números transparentes, nem a metodologia escolhida para o recorte temporal em questão, a nota também exaltava a redução do efetivo policial e do aumento do público – um dado extremamente relativo. São Paulo segue sendo um estado com recorrentes problemas de violência no futebol.
Em 2019, quando finalmente desistiu da ideia de “torcida humana” (corruptela para a imposição generalizada da “torcida única” na Arena da Baixada), Mario Celso Petraglia, presidente do Clube Athletico Paranaense, fez-se publicar no site oficial os dados que validavam a sua tentativa.
Segundo ele, e de acordo com “balanço do MPPR”, o saldo foi positivo. Uma redução de 14% do efetivo policial para os jogos (de 170 para 151) e queda no número de ocorrências de conflitos entre torcedores, de 28 para 20. Os registros de violência entre torcedores em terminais de ônibus foi reduzido de 132 em jogo com duas torcidas, para 109 para as ocasiões de torcida única.
Em suma, provou que a restrição de visitantes não coibe atos de violência, apenas tira os visitantes do jogo.
A desistência da “torcida humana”, porém, não foi o último ato. Em 2022, Athletico e Coritiba (sob nova direção) se uniram para apoiar a “torcida única” em todos os clássicos entre as duas equipes, em qualquer competição. Antes, ainda convicto da validade de duas ideias, Petraglia havia soltado em uma live no canal oficial do clube a frase “O Ministério Público Federal está tentando fazer um movimento para que tenhamos torcida única no Brasil todo”.
A Comissão Permanente de Prevenção e Combate à Violência nos Estádios, que é ligada ao Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais (CNPG) e reúne os MPs estaduais, uma associação que atua conjuntamente sobre o tema, não possui qualquer nota oficial acerca dessa intenção, embora os seus membros estejam cada vez mais ativos na imposição de “torcida única”. Foi o que ocorreu no Ceará nesse ano, quando o MP local teve seu pedido de proibição de visitantes negado pelos clubes e pela federação cearense.
O caso recente do Ceará é interessante para observar o tema sem total fatalidade, já que a negativa ocorreu em uma circunstância que poderia servir de justitificativa. Com o Castelão interditado, o MPCE (junto à Secretaria de Segurança do Estado) sugeriu a medida restritiva em caráter “circunstancial e pontual”, dada a capacidade de apenas 15 mil torcedores no estádio Presidente Vargas.
Federação e clubes rejeitaram a proposta e não apenas colaboraram para a realização do clássico nas melhores condições de segurança – inclusive criando uma separação preventiva entre duas torcidas rivais do próprio Fortaleza -, como lançaram nota conjunta enaltecendo a “realização exitosa” e a demonstração “para todo o país que é possível”, com manutenção da “essência do clássico”.
Em Minas Gerais, a própria Policia Militar tem se colocado como protagonista na defesa do espetáculo das torcidas. Na final do Campeonato Mineiro de 2022, o tenente-coronel Flávio Santiago foi enfático ao sugerir o formato de “meio-a-meio” como mais favorável ao planejamento da segurança. E foi exitoso ao esquematizar a chegada das torcidas junto com suas próprias lideranças.
O comandante seguia a linha adotada em 2016 – em um contexto que o clássico sofria diversas alterações de local, redução de carga para visitantes e até experiências de torcida única -, quando o tenente-coronel Giafranco Cafaia se posicionou de forma semelhante: “A verdade é que a segurança dentro do estádio não é problema já tem alguns anos. O problema sempre esteve fora dos estádios, no deslocamento das torcidas. Acredito que fazer os clássicos com torcida meio a meio seja até mais seguro”.
Os mineiros partiram do pressuposto lógico de que é mais fácil gerir a multidão e os potenciais torcedores violentos em uma localidade de maior previsibilidade – como é o estádio e seus arredores – do que tentar prever ocorrências e atuar em uma área precisa da imensa Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Já em 2023, no mesmo fim de semana dos jogos listados no início desse texto, o Batalhão Especializado de Policiamento em Estádios (BEPE) da Policia Militar do Rio de Janeiro mostrou que, apesar dos problemas, o planejamento prévio em diálogo direto com as torcidas apresenta resultados. O clássico entre Fluminense e Vasco, que nos últimos anos se tornou um dos mais problemáticos do estado, foi realizado sem registros de problemas mais graves.
As principais torcidas de cada lado – que sofreram diversos banimentos recentes, mas foram “anistiadas” por uma lei estadual – tiveram o trajeto determinado e foram conduzidas pelo batalhão até o estádio.
Ceará, Minas Gerais e Rio de Janeiro, assim como o Rio Grande do Sul, não estão em situação distintas dos seus estados vizinhos quando se trata de violência entre torcedores, mas apresentam abordagens mais condizentes com a realidade. A presença das duas torcidas no jogo e a sua integração no planejamento do deslocamento tem apresentado resultados positivos possíveis, sem cercear o direito dos demais torcedores.
Após o clássico entre Palmeiras e Santos no estádio do Morumbi, cedido pelo São Paulo para o rival alviverde, um sinal de que algo começa a ser feito para repensar essa questão. Os históricos rivais Palmeiras e São Paulo lançaram nota conjunta apoiando a revisão da política de “torcida única” e a retomada dos visitantes nos clássicos paulistas. Um começo.
Na Argentina, os clubes das principais divisões estão em sua maioria concentrados no chamado “conurbano” de Buenos Aires, conjunto de cidades vizinhas da capital federal, onde o problema da violência das barras bravas é histórico, a ocorrência de muitos jogos simultâneos provocava grande dificuldade no planejamento da segurança. O banimento de visitantes começou em 2007 nas divisões inferiores e passou a ser regra desde 2013 para todo o país. São raras as ocasiões onde não há apenas uma torcida na arquibancada.
Ainda na América do Sul, há o caso do Peru. A restrição aos visitantes se impôs a partir de 2018 nos jogos entre Alianza Lima, Universitario e Sporting Cristal, clubes da capital Lima, além do Sport Boys, de El Callao.
Na Europa não é diferente, inclusive em países onde pouco se conhece a questão da violência entre torcidas e onde os clubes geralmente são de cidades diferentes. Na França, jogos entre o Paris Saint Germain e o Olympique Marseille não contam com visitantes desde 2009. A medida se estende com frequência aos jogos dessas equipes com o Lyon, mas também passou a ser muito comum entre equipes menores.
Algo parecido com o que ocorre nos Países Baixos (Holanda), onde torcedores do Ajax, de Amsterdam; do Feyenoord, de Roterdam; e do PSV, de Eindhoven, estão impedidos de frequentar o estádio dos rivais desde ao menos 2009. A punição, incialmente prevista para durar até 2014, já está prestes a completar 15 anos e tem sido frequentemente contestestada.
Também é o caso dos jogos entre Roma e Napoli, a punição do tipo mais recente na Europa, após confronto entre torcedores desses dois clubes em uma estrada.
Na Grécia, os confrontos entre os clubes Olympiakos e Panathinaikos estão sem torcedores vistantes desde 2010, com a adição de PAOK e AEK nessa lista em seguida. Na Turquia, todos os jogos entre os rivais de Istambul – Galatasaray, Fernehbaçe e Besiktas – são realizados apenas com a torcida mandante, resultado de uma série de medidas de perseguição política do governo de Recep Erdogan.
Curiosamente, na Inglaterra, país famoso pelas medidas mais restritivas que se tem conhecimento no futebol, adotadas desde o início dos anos 1990 sob o argumento de combate ao hooliganismo, a ideia de proibição de visitantes nunca foi colocada em prática – talvez, sequer cogitada.
Embora o país reúna todas as problemáticas observadas nos casos anteriores – como o alto grau de violência entre grupos organizados, frequência de jogos de alta tensão, encontro entre muitos clubes localizados na mesma cidade ou em cidades próximas e uma cultura de viagens para jogos como visitante.
Com a criação de uma terceira competição europeia, a Conference League, a UEFA passou a recomendar a proibição de visitantes em diversas ocasiões. Ao longo do segundo semestre do ano, quando são realizados dezenas de jogos da primeira fase da Champions League, da Europa League e da Conference League, são múltiplos os casos de confrontos entre torcedores, o que tem motivado tais medidas restritivas antecipadas.
Por outro lado, a Football Supporters Europe, principal associação torcedores do continente, tem buscado combater a proibição generalizada dos visitantes, tanto em jogos domésticos, quanto em jogos internacionais. A organização vem estabelecendo diálogos com a UEFA para que encerre a prática de banimento aos torcedores visitantes, porque entende que isso fere direitos civis.
A proibição completa da parcialidade visitante é arbitrária porque não distingue as várias formas, práticas e costumes que compõem o plural e heterogênio coletivo chamado “torcida”. Ao alegar que busca punir “a torcida organizada violenta”, a medida prejudica todos os torcedores, principalmente aqueles que nunca praticaram e não pretendem praticar violência; tampouco pune de forma efetiva aqueles que cometeram infrações.
Também não compreende a diferença crucial entre um incidente isolado, talvez causado pela catarse esportiva ou indisposição entre dois indíviduos, daqueles eventos protagonizados por agrupamentos categoricamente motivados pelo confronto físico. São casos de natureza totalmente distintas, que deveriam ser tratados com ações de devida proporção.
Nesse sentido, há outro problema invisível ou pouco comentado: o surgimento da figura do “torcedor infiltrado” nos jogos onde os visitantes são proibidos. São aqueles que se aventuram a comprar um ingresso para o jogo, se arriscam em adentrar ao estádio “à paisana” e acabam sendo descoberto por torcedores locais – geralmente sendo alvo de agressões, mesmo por torcedores comuns não ligados a torcidas organizadas.
Já foram muitos os casos nesse sentido, mas dois jogos recentes mostram o tipo de risco que se cria quando o setor visitante está desativado. No dia 15 de janeiro, no clássico potiguar entre ABC e América de Natal, no estádio do Frasqueirão, um “torcedor infiltrado” foi reconhecido pela torcida local, agredido e expulso da arquibancada.
Menos de um mês depois, o primeiro clássico com “torcida única” em Pernambuco após determinação da Secretaria de Defesa Social, no estádio dos Aflitos, o jogo entre Náutico e Sport contou com mais de um caso de “torcedor infiltrado” sendo agredido e expulso pela torcida mandante.
Recentemente, esse problema foi observado em um jogo entre Palmeiras e Flamengo em que se decretou “torcida única”. Esse tipo de situação já ocorreu em diversas ocasiões de clássicos de São Paulo e da Bahia, inclusive atingindo torcedores dos próprios clubes mandantes que são confundidos como torcedores rivais.
A inexistência de um setor de visitantes torna qualquer frequentador suspeito, como um “infiltrado” em potencial, mesmo aquele turista ocasional – basta não se comportar como manda a cartilha do torcedor mais apaixonado. Todas as torcidas estão passíveis de reagir dessa forma, dado o fenômeno “territorialista” comumente observado nos estádios.
Mas o fato é que os estádios estão se tornando cada vez mais espaços exclusivistas e pouco tolerantes à própria ideia de convívio com torcedores do clube adversário, sejam eles rivais históricos ou não. Esse é um prejuízo cultural imensurável na própria ótica do que é o torcer no futebol.
Clubes, imprensa esportiva, torcidas organizadas e torcedores em geral precisam passar a compreender esses aspectos e passar a se posicionar de forma mais incisiva contra a ideia de “torcida única”. Nem ao menos que seja para pressionar por ações mais inteligentes e efetivas da parte daquelas autoridades tão acostumadas a proteger suas mãos enquanto seguem dando murros na ponta dessa faca manjada.
Fonte: Irlan Simões / GE